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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Um Olhar sobre Crime e Castigo de Dostoiévski

 

 A Literatura Russa é constantemente colocada em um pedestal de dificuldade e Crime e Castigo aparece como um calhamaço representante dessa movimentação. Mesmo assim, dei a cara a tapa para a leitura  e afirmo com gosto: Não caiam no medo forjado dessas obras. Muito pelo contrário, se dê à oportunidade de conhecê-las.

  Não é uma leitura fácil, no entanto. E não no sentido de estruturação linguística - ainda assim procure uma boa edição/tradução como a da Editora 34 -, mas na dureza do seu conteúdo. Me assustei logo de início como não havia um capítulo sem uma tragédia diferente.

  E me choquei mais ainda ao pensar na aproximação de realidade entre uma Rússia de séculos atrás e uma realidade brasileira presente. Funcionários públicos perdendo a segurança, estudantes sem perspectiva, condições de moradia lamentáveis, mudanças bruscas de vida, e por aí vai. Mas algo que me chamou a atenção foi o fato de os personagens não responsabilizarem nenhuma esfera "inalcançável", mas sempre buscarem soluções absurdas: as piores possíveis. E ainda assim, você os compreende.

  Evidentemente, compreender não é concordar, mas ainda assim isso revela o quão empaticamente desenvolvidos são esses personagens. A princípio, Raskolnikov me dava certo asco, seu egocentrismo e justificativas me passavam a impressão de uma obra superestimada. Mas o carisma do protagonista se desenvolve à medida em que seu fluxo de pensamento que beira à insanidade - tão destacada no livro -revela que ele não estava tão seguro de si assim, que ele era humano e que o castigo se apresenta em sua consciência.

  A complexidade dos personagens também se revela no enredo, à medida em que certos personagens que pareciam apenas passageiros vêm para ficar e trazem consigo suas histórias e problemas que se entrelaçam. Uma das relações que mais me chamou atenção foi a de Sônia e Raskolnikov, uma vez que ela se mostra barroca com a pureza em meio às condições ditas imorais. Essa suposta contradição encanta o protagonista a ponto de ele considerar que a única explicação para tal era ela estar à beira da loucura, assim como ele acreditava estar. E isso faz com que ele se encante por ela, mas não se apaixone de fato. Esse tipo de representação feminina se mostra comum à época da escrita - embora hoje seja batida -, mas o autor ainda trata Sônia com mais respeito que personagens similares em outras obras.

  Aliás, a presença das mulheres neste livro é no mínimo interessante. A aproximação de personalidade de Dúnia com o irmão Raskolnikov é um fato trazido à tona pelos próprios personagens, e ainda assim as escolhas morais de ambos os afasta. Fazendo um parênteses com um personagem masculino, Razumikin, amigo do protagonista, também passa por situação muito semelhante e toma escolhas distintas. Talvez por isso, antes mesmo de Razumikin encontrar Dúnia eu já esperava que a narrativa de ambos fosse se aproximar. Isto, além de uma centena de outros motivos, traz o teor psicológico de Crime e Castigo, demonstrando a relevância das escolhas para a formação da personalidade, da vida e do caráter de cada um.

  Além disso, Dúnia combina feminilidade e força, um par incomum para personagens do século XIX, mas que funciona perfeitamente bem. Juntamente com Sônia e sua mãe, trabalha o aspecto do amor incondicional que o protagonista não consegue compreender em meio ao peso da consciência.

  E ainda que a figura materna reproduza uma personalidade literária comum, da mulher que busca manter certa nobreza apesar dos empecilhos, com nervos à flor da pele e extremamente protetora de seus filhos, uma outra personagem faz um paralelo interessante com ela. Catierina, madrasta de Sônia e mãe de outras três crianças, é uma mulher doente com um marido horrendo que já teve seus dias de glória e vive movida pelas lembranças deles. Ao tentar manter sua "nobreza", Catierina perde as rédeas dos próprios nervos, saúde, filhos e vida.

  Assim fica visível como a vida dos personagens é um emaranhado de fios paralelos e congruentes. Fica evidente como o aspecto psicológico da obra encantou grandes pensadores. Explicita o quanto o pedestal em que Crime e Castigo é colocado não é à toa, mas ainda assim é uma leitura possível e necessária.


Data de escrita: 15/01/2021

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