Então você entende
Há muito tempo, nós não nos falávamos mais,
porém ela me procurou no início daquela noite chuvosa. Ela sabia que eu estaria
lá. Eu sempre fora previsível para Ísis.
Verdade seja dita, eu não queria vê-la. Não desejava encarar seus olhos nublados
e invasivos, que reviravam minha alma com facilidade. Não queria perceber pela
milésima vez que enquanto ela conhecia tudo sobre mim eu não desvendava nem ao
menos um de seus gestos.
Virei as costas e observei o mar revolto, na esperança de que ela partisse.
Mas ela fez justamente o oposto, e se aproximou. Não resisti e voltei a
olhá-la. Seu cabelo estava molhado devido a chuva e seu rosto iluminados pela
lua. Ísis estava mais velha e havia olheiras sob seus olhos. Seu olhar nunca
esteve mais experiente, como se tivesse vivido por séculos. Tinha mantido os
gestos tristes, por mais que ela pudesse demonstrar grande alegria pelo mais
breve dos sorrisos.
-
Por que se esconde? – Ísis perguntou em tom habitual, fazendo com que eu me
esforça-se a fazer uma leitura labial para poder compreendê-la diante do
barulho da chuva. – Por que se esconde de mim?
Seu
vestido encharcado escorregou por seu corpo com a ajuda de seus dedos. A nudez
não representava para nós nenhum tipo de sensualidade, mas a entrega, a não
necessidade de pudores.
-
Não faça isso. Não desta vez. – eu disse. – Vai adoecer.
- Você
também não está com as vestes que lhe cobrem o peito. – ela chegou mais perto e
encarou-me sem hesitação. – Sejamos verdadeiros.
-
Como fala de verdade se foi embora alegando que não podemos ficar juntos porque
o mundo não permite? – tentei controlar a minha voz e meus sentimentos.
-
Um dia você entenderá por si mesmo. – a chuva
despencava e banhava o rosto dela, não me permitindo identificar o que eram
lágrimas e o que eram gotas de chuva. – Rezo para que me perdoe.
-
Você costumava contar a todos a história da Medusa. Uma moça linda de longos
cabelos – enrosquei meus dedos em suas madeixas escuras. - que foi transformada
em uma criatura que tornava aqueles que olhavam em seus olhos em pedra. – dei um
passo para trás e retirei minha mão de seus cabelos. – Transformou-me em pedra
e partiu-me em pedaços quando foi embora, Medusa.
-
Tenho uma missão a cumprir. – ela desviou os olhos com a firmeza que lhe era
pertencente.
- O
que foi? Você é boa demais para mim? É isso o que todos dizem. Quer levar uma
vida cheia de amor. Quer ser uma médica sem fronteiras, amar a todos.
Instantaneamente percebi quanto rancor e infantilidade havia em minha
voz. Ela era, de fato, boa demais para mim.
-
Se viesse comigo, poderíamos ajudar todas essas pessoas juntos. – ela tentou
sorrir, mas minha ofensa parecia ter lhe atingido.
-
Não sou médico. Fui justamente treinado para manter a fome e a doença naqueles
que você vai salvar. – pensei em meu emprego ingrato de alto escalão dentro de
uma farmacêutica, que além de não fornecer os efeitos prometidos em seus
medicamentos, ainda ocultava muitas curas para doenças terminais e implantava
toxinas no ambiente de alguns lugares para que as pessoas adoecessem. – O
melhor que fez foi me deixar para trás.
- Então você entende. O mundo nos separa.
Ela me olhou uma última vez e, sob a chuva, partiu.
Ela me olhou uma última vez e, sob a chuva, partiu.
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