Antes de começar: pequenos esclarecimentos. Encontrei no meu computador esse trabalho que fiz no ensino médio, e ainda que não seja algo devidamente acadêmico cheio das normas da ABNT, é fruto do esforço de uma secundarista que estava encantada com os livros sobre o sertão brasileiro. Espero que seja útil para sua pesquisa e/ou curiosidade.
Autoria: Maria Clara L.
Resumo:
Ensaio
que objetiva analisar os possíveis motivos e reflexos da violência e os
conceitos de justiça atribuídos pelo narrador-personagem durante a obra Infância de Graciliano Ramos. Tais temas
serão expostos de forma embasada principalmente no conteúdo do livro, mas também
de algumas outras fontes com temática associada.
1.
Introdução
O
tema “Violência e Justiça na Obra
Infância” foi selecionado devido a sua importância no desenvolvimento da
narrativa e dos personagens, além de favorecer observações em outras obras do
mesmo autor e refletir sobre esses aspectos também em casos de cotidianidade.
A
partir da leitura integral do texto de Infância
é possível notar o quão cíclica e habitualmente a violência é percebida pela
maioria dos personagens desse contexto social. Também fica claro a insegurança
do narrador-personagem em relação ao seu comportamento diante de fatores
violentos, já que se diferencia das maiorias, e também às noções de justiça
empenhadas pelas pessoas ao seu redor.
São
objetos de análise todos os castigos e agressões de cunho físico ou moral, além
das opiniões do narrador sobre os aspectos abordados. Para um aprofundamento
mais eficiente, essas abordagens estarão enfocadas nos personagens do romance:
atos de violência e concepções de justiça nos quais estão respectivamente
envolvidos.
2.
Desenvolvimento
2.1-
Conceitos de “Violência” e “Justiça” de Acordo com Bases Atuais
Segundo o Dicionário Michaelis (2012), a
violência pode ser caracterizada
enquanto “[...] 2 Qualidade do que atua com força ou grande impulso;
força, ímpeto, impetuosidade. 3 Ação violenta. 4 Opressão,
tirania. [...]7 Irascibilidade. 8 Qualquer força empregada contra
a vontade, liberdade ou resistência de pessoa ou coisa. 9 Dir
Constrangimento, físico ou moral, exercido sobre alguma pessoa para obrigá-la a
submeter-se à vontade de outrem; coação”. É de grande importância o enfoque na
irascibilidade, impetuosidade e coação para compreender melhor a atitude de
grande parte dos personagens, que, pela sua falta de racionalidade e reflexão,
acaba se levando pelos impulsos e agindo de forma que seu poder seja
demonstrado e estabelecido pela força bruta.
Para o mesmo
Dicionário, o verbete justiça é
qualificado como “ 1 Virtude que consiste em dar ou deixar a cada um o
que por direito lhe pertence. 2 Conformidade com o direito. [...] 6 Autoridade judicial. 7 Ação de
reconhecer os direitos de alguém a alguma coisa, de atender às suas
reclamações, às suas queixas etc. 8 Poder de decidir sobre os direitos
de cada um, de premiar e de punir. 9 Exercício desse poder [...]”. De
acordo com os posteriores exemplos, poderá se observar que, de fato, a justiça
é uma manifestação do poder que um personagem possui sobre o outro em relação
ao que julga correto, com pouco ou nenhum embasamento na lei judicial, mas em
suas “leis pessoais” baseadas em seu emocional.
É perceptível então a
forte ligação entra os conceitos de violência
e de justiça estão fortemente
atrelados sendo a primeira uma forma de execução de poder e daquilo que subjetivamente
considera justo e correto.
2.2-
Personagens
Conforme se avança na
leitura das obras de Graciliano Ramos, observa-se que os cenários são compostos
mais por indivíduos do que por objetos. O autor valoriza bastante o mergulho
psicológico em seus personagens, não temendo caracterizá-los seja da forma mais
rudimentar até a mais profunda. Por esse motivo, o aspecto central de ensaio
será abordado através dos personagens.
2.2.1. –
A Mãe
Desde suas mais oníricas recordações da
figura materna, o narrador-personagem tem em mente “[...] uma senhora enfezada,
agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um
cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com
um brilho de loucura”. Também é dito que quando havia harmonia conjugal, toda
essa violência de sua aparência e personalidade pareciam dissolver-se,
voltando, porém, com a menor futilidade que lhe devolvesse a inquietação.
Também resolvia suas desconfianças da mesma forma que a maioria das outras
pessoas do meio: através de ameaças violentas.
Um outro aspecto interessante de sua
personalidade são os motivos de seus conflitos, como por exemplo a aversão que
sentia pela filha de um casamento anterior de seu marido, que é chamada pelo
narrador de “irmã natural”. A mãe do eu-lírico se sentia incomodada pela beleza
da menina, da qual não possuía, e, peculiarmente, descontava sua angústia em
seus próprios filhos que lhe assemelhavam, pois cria que se maltratava quando
os maltratava. Além disso, também se enfastiava quando discordavam de suas
crenças, como a religiosa, e usava da força como último argumento.
2.2.2. –
O Pai
Ainda que não se lembre de sua primeira
infância com clareza, a confusão de lembranças de aspectos violentos é evidente
no comportamento dos pais e no próprio ambiente. Um exemplo disso está presente
no trecho: “Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem
lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas,
tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto”.
Acostumara-se também a ver o pai
enquanto uma figura de autoridade, sério e silencioso enquanto acumulava seus
berros para seus funcionários da fazenda. Sutilmente, começa então a associação
do narrador entre violência e poder no trecho “Meu pai era terrivelmente
poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse, fora
dele, de repente o abandonasse, deixando-o fraco e normal[...]”.
Um dos capítulos mais importantes para o
tema da “Violência e Justiça” é o capítulo “Um Cinturão”. Nesse, o personagem
principal admite que seu envolvimento com a justiça foi doloroso e que lhe
deixara marcas profundas, sendo posto no banco do réu pela primeira vez quando
tinha cerca de cinco anos e seu pai perde um cinturão seu, julgando o menino
enquanto culpado e castigando-o logo em seguida ao ver que a criança estava
assustada demais até para se defender. O desespero do infante é tamanho que ele
chega a torcer para que alguém chegue e receba o castigo em seu lugar. Ao
encontrar o cinturão na rede onde dormira há pouco, o pai reconhece seu erro,
mas, possuidor de grande orgulho, não se aproxima do filho para se desculpar.
Neste capítulo, o narrador-personagem desenvolve reflexões interessantes, como
a justiça como algo que não lhe parecia muito correto e eficiente e o medo
enquanto uma violência maior que a própria dor.
O pai possuía, além disso, o costume de
chamar o filho por nomes grosseiros, como “papa-lagartas”, entre outros.
Em dado momento da narrativa, o pai
resolve ensinar o filho a ler e este acata esse desejo da figura paterna com a
esperança de reduzir os castigos recebidos. Entretanto, aprender com o pai se
mostra uma tarefa tempestuosa devido a sua impaciência e agressividade;
sentia-se tão oprimido que perdia nos pensamentos até aquilo que havia
aprendido e era submetido a palmatórias.
Anos mais tarde, ainda que não soubesse
de direito, o pai recebera o cargo de juiz substituto já que possuía o “necessário”
para a função: a confiança do chefe político atual e a plena noção de que à
justiça local convinha que os amigos fossem absolvidos e os inimigos
condenados. Apesar da habitual violência aos filhos, no episódio em que manda
prender o morador de rua Venta-Romba, o pai mostra-se pouco habilidade na
violência enquanto autoridade oficial. O fato é que o narrador evolui o seu
conceito de justiça com essa situação ao não ver sentido em prender um homem
tão frágil que não podia fazer mal. É possível, então, comparar os capítulos de
Venta-Romba e o do Cinturão, onde ambos os personagens se mostravam tão
amedrontados que não conseguiram reagir diante da figura do Pai/Juiz e apenas
sofreram as punições injustamente. Logo, a concepção de justiça passa a ser objeto
de constante desconfiança para o narrador.
2.2.3. –
O Papa-hóstia
Tal criança aparece por volta da página
18, e é citada sem muitos detalhes, mas é um dos primeiros exemplos de
violência infantil na obra. A história lhe é contada por D. Maria desde muito
pequeno, onde o tal menino – Papa-hóstia - era amancebado do Vigário e era
maltratado por este último e sua amante, a Folgazona. O narrador não capta
muito bem de que forma o rapaz era maltratado, mas em sua ingenuidade, calcula
que seja da mesma maneira que seus pais o faziam: através de “bolos,
chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas”. Por esta questão de identificação, o
eu-lírico passa admirar este personagem, já que este último conseguia descontar
a sua raiva em algo – como queimar o rabo dos gatos, por exemplo - enquanto o
próprio narrador admite não ter jeito para a violência, aguentando todos os
“cascudos” em infeliz silêncio. Percebe-se então que o narrador não admirava a
violência em si, mas a capacidade de “vingar-se da vida” pelo desconte. A
partir desse momento, fica muito claro o aspecto cíclico de descontar
frustrações, agressões e outros sentimentos por meio da violência.
2.2.4. –
Os Avós
É alegado que a avó materna da
personagem principal sofrera com os ciúmes do marido e por esses desgostos não conseguia
demonstrar a bondade de sua pessoa.
2.2.5. –
Os Freis
Mais um exemplo da conquista do respeito
pela agressividade, era a própria figura religiosa do Frei Clemente que é
caracterizado como bárbaro por fustigar as mulheres, insultar seus paroquianos
e gritar com certa frequência.
2.2.6. –
O Menino José
Tal figura era uma criança muito ativa
que realizava muitas artimanhas. Por volta da página 86 e 87, José é castigado
pelo pai do narrador-personagem, que começa a enxergar a justiça como o troco
por meio de violência, uma sentença fornecida por uma pessoa de maior força.
Porém, ao desejar provar para si mesmo que era capaz de ferir alguém, se junta
ao pai para fazer José pagar a pena e acaba também pagando pelo erro, já que o
pai acredita que o filho machucou o outro menino. Quando o pai lhe castiga, o
narrador acaba por não desenvolver mais sentimentos ruins, pois nota que, de
fato, não tinha aptidão para a violência. Repara-se então que a violência é tão
constante na vida do eu-lírico que este associa o castigo a uma justa redenção,
preferindo receber o castigo esperançoso de que pudesse assim reaver seu perdão
e viver bem novamente.
2.2.7. –
Os Professores
Depois de muitas tentativas de
ensiná-lo, o pai e o avô do personagem principal resolvem colocá-lo em uma escola,
lugar que o narrador considerara injusto e horrendo, pois que não podia negar
sua existência.
A primeira profissional da educação que
lhe acompanha é D. Maria, que apesar de não ter muito conhecimento, é uma
pessoa paciente que lhe afetava de maneira que lhe causava culpa caso não se
esforçasse o suficiente, e não por motivos opressores, mas por desejar
agradá-la.
Diferentemente da primeira professora,
Maria do O se mostra bem diferente da anterior e, assim como o pai, adere à
palmatória.
Já o terceiro professor, apesar de ser
um homem de mais conhecimento, mostra-se uma figura encolerizada que em sua
aspereza agredia os alunos com a palmatória como se “quisesse derrubar o
mundo”.
Em certa passagem da narrativa em âmbito
escolar, vê-se que a violência é estimulada: aquele que acertasse uma questão
difícil teria o direito de bater com a palmatória naqueles que errassem.
2.2.8. –
Chico Brabo
No período em que apresentou uma doença
que lhe causou uma cegueira, o narrador-personagem passa a prestar mais atenção
nas palavras e sons ao seu redor, e o comportamento de um dos personagens lhe
chama a atenção: Chico Brabo. Tal homem deixava o eu-lírico nervoso já que ele
demonstrava aparente tranquilidade até mesmo quando solicitava a presença de
seu funcionário João para que lhe castigasse. Esse comportamento explicita
ainda mais a cotidianidade da violência, seja na cessão ou recebimento.
Chico Brabo parecia tão complexo para o
narrador que ele o divide em dois: o moço sorridente que fornece remédios e o
homem ruim que bate em João. O narrador também deduz que se Chico tivesse uma
família e/ou mais funcionários, poderia “dividir” suas agressões entre eles
igualmente, de forma que tudo não recaísse apenas sobre João.
2.2.9. –
Fernando
Desde que se mudara e seu pai passara a
ser dono de uma loja, o narrador sofre perseguição de adultos que o faziam de
chacota. Uma passagem interessante a respeito é a qual Fernando o acusa de
mentiroso e, para sua defesa, o narrador-personagem declara que esta afirmação
é injusta já que não sabe mentir, o que revela uma evolução em sua noção de
justiça.
Ao falar um pouco mais sobre o
personagem Fernando, averigua-se que ele era um homem de natureza negativa, que
violentava meninas e apavorava as mais diversas pessoas, sendo humilhado apenas
pelo próprio patrão. Presume-se que muito de seu comportamento tirânico seria
um desconte dessas humilhações sofridas.
2.2.9.1.–
O Menino da Escola
Essa criança era excluída na escola e o
pai da mesma alegava que o jovem não prestava, mas o próprio narrador não sabia
o porquê dessas afirmativas embora demonstre certa curiosidade a respeito. De
toda forma, o menino sofria agressões e todos os lugares que frequentava e,
mais tarde, se tornaria de fato uma pessoa ruim e violenta.
Tal pessoa morreria vítima de punhaladas
de um inimigo, o que parece ser bastante comum no contexto da obra já que as
pessoas não se mostravam impressionadas com a “justiça feita pelas próprias
mãos” a partir do momento em que estavam acostumadas encontrarem mortos os
pobres “cabras ruins”.
De qualquer forma, este menino seria um
exemplo do resultado do determinismo social, caso oposto ao do
narrador-personagem, que apesar do ambiente e dos maus tratos sofridos
permanece uma pessoa não agressiva e com interessantes reflexões sobre a
justiça.
3.
Conclusão
Após
a cuidadosa avaliação das passagens narrativas é possível concluir que a
violência no contexto da obra Infância
é uma forma de demonstrar poder, argumentar, resolver problemas, descontar
sentimentos, estabelecer respeito e, mais abrangentemente, conseguir o que se
quer, além de possuir um curioso caráter cíclico. Já a justiça é algo que faz o
narrador refletir durante todo o livro e se aproxima mais da desconfiança para
com o termo, do que da certeza de que ela concederia penalidades honestas aos
reais culpados de algo. Tais concepções fariam o narrador-personagem crescer
com tamanha desesperança que nem ao menos cita o menor sonho infantil ou alguma
brincadeira que lhe causasse muito prazer em suas próprias memórias.
Além
disso, outro fator de destaque foi que, apesar de todas as influências das
pessoas e meios, o determinismo não lhe tornou, até o final da narrativa, uma
pessoa de índole má ou agressiva. Apesar das animalizações, isso mostra que o
livro está além de algo como um pós-Naturalismo, mas está classificado como um
Modernismo autêntico que apenas o próprio Graciliano Ramos poderia fornecer.
Bibliografia
LINS,
Álvaro: Jornal de Crítica – Segunda Série. Rio de Janeiro, 1943 (Artigo sobre
Graciliano Ramos)
MICHAELIS
(Dicionário de Língua Portuguesa) - Editora Melhoramentos, 2012 – Nova
Ortografia – Site: http://michaelis.uol.com.br/)
RAMOS,
Graciliano: Infância (Livro) – Editora Record
VESTIBULAR
1 (Site: http://www.vestibular1.com.br/resumos_livros/infancia.htm)